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Uma análise sobre a responsabilidade civil do médico

Em janeiro de 2023, o Brasil contava com 562.299 médicos inscritos nos Conselhos Regionais de Medicina (CRMs). Dados do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) indicaram que em 2024 estão ativas mais de 573.000 demandas judiciais relacionadas à saúde no país. Em 2023, foram registrados ainda 25.000 processos por erro médico, uma alta de 35% em relação a 2020.

Das especialidades médicas com maior número de processos, estão a ginecologia e obstetrícia, cirurgia plástica, ortopedia e traumatologia, clínica médica e cirurgia geral.

O erro médico se caracteriza pela existência de culpa, a qual é demonstrada pela ocorrência de imprudência, negligência ou imperícia. A imprudência é a falta de cautela e de cuidado, enquanto a negligência é a omissão ou inobservância do dever e da tomada das devidas precauções. A imperícia, por sua vez, é a falta de técnica necessária para realizar algo.

Desse modo, se o médico age com imprudência, negligência ou imperícia, fica caracterizada a culpa, conforme artigos 186 e 951 do Código Civil:

Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.

Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.

De mesmo modo, dispõe o artigo 14, §4º do Código de Defesa do Consumidor:

Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.

  • O serviço é defeituoso quando não fornece a segurança que o consumidor dele pode esperar, levando-se em consideração as circunstâncias relevantes, entre as quais:

I – o modo de seu fornecimento;

II – o resultado e os riscos que razoavelmente dele se esperam;

III – a época em que foi fornecido.

  • O serviço não é considerado defeituoso pela adoção de novas técnicas.
  • O fornecedor de serviços só não será responsabilizado quando provar:

I – que, tendo prestado o serviço, o defeito inexiste;

II – a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro.

  • A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa.

Esse também é o entendimento do Tribunal de Justiça de Minas Gerais:

EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS – CERCEAMENTO DE DEFESA – INOCORRÊNCIA – ERRO MÉDICO – DIAGNÓSTICO E TRATAMENTO DE SAÚDE – LAUDO PERICIAL – RESPONSABILIDADE SUBJETIVA – NEXO DE CAUSALIDADE – FALHA NA PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS — NÃO DEMONSTRADAS – RECURSO NÃO PROVIDO.

  1. Não há que se falar em cerceamento de defesa em razão da dispensa da oitiva de testemunhas ou de juntada de mídia da cirurgia, se a prova pericial realizada é suficiente ao deslinde da controvérsia.
  2. Nos termos do §4°, do art. 14, do Código de Defesa do Consumidor, a responsabilidade pessoal dos profissionais liberais é subjetiva, isto é, será apurada mediante a verificação de culpa.
  3. O acervo probatório é conclusivo quanto à inexistência de falha na prestação de serviços, afastando a alegação de erro médico e, via de consequência, o dever de indenizar.  (TJMG –  Apelação Cível  1.0000.20.598212-7/002, Relator(a): Des.(a) Eveline Félix , 18ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 20/02/2024, publicação da súmula em 20/02/2024) (Grifo nosso)

APELAÇÃO CÍVEL – CONSUMIDOR – ERRO MÉDICO – NEGLIGÊNCIA OU IMPERÍCIA – INEXISTÊNCIA. Enquanto a responsabilidade das clínicas médicas, a partir da vigência da Lei 8.078/90, passou a ser objetiva, levando em conta que são fornecedores de serviços, a do médico é subjetiva, sendo imprescindível para sua caracterização a comprovação do nexo de causalidade e da culpa. Ausente a comprovação de imperícia ou negligência do profissional médico, deve ser afastado o pedido de indenização por danos morais e materiais.  (TJMG –  Apelação Cível  1.0000.23.224717-1/001, Relator(a): Des.(a) Estevão Lucchesi , 14ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 08/02/2024, publicação da súmula em 08/02/2024) (Grifo nosso)

Portanto, percebe-se que a responsabilidade civil do médico depende da ocorrência da culpa. É a chamada responsabilidade civil subjetiva. Para que ocorra a condenação do médico nas ações judiciais que versam sobre indenização em razão de falhas na prestação do serviço médico, é preciso que fique demonstrado que o médico agiu com culpa, praticando, assim, um ato ilícito. Deve ser demonstrado também o nexo de causalidade entre o ato cometido pelo profissional e o dano/prejuízo sofrido pelo paciente. Ou seja, o dano sofrido deve manter uma relação com o ato praticado e esse deve ser ilícito, caracterizado pela ocorrência de negligência, imprudência ou imperícia.

EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. DANOS MORAIS. PESSOA MORTA. LEGITIMIDADE ATIVA DE PARENTE. DANO MORAL POR RICOCHETE. RESPONSABILIDADE CIVIL. INCLUSÃO DE NOME DE PARENTE EM CADASTRO DE RESTRIÇÃO AO CRÉDITO. DANO. AUSÊNCIA DE PROVA. IMPROCEDÊNCIA. Nos termos do art. 12, do Código Civil, o parente do de cujus é parte legítima para requerer reparação por perdas e danos, em relação ao direito da personalidade, o que é denominado de dano moral por ricochete. Para procedência do pedido de indenização, por dano moral, a parte deve comprovar a ilicitude da conduta, o resultado danoso e o nexo de causalidade entre ambos. Ausente qualquer desses pressupostos, a improcedência da ação é medida que se impõe.  (TJMG –  Apelação Cível  1.0394.09.104109-2/001, Relator(a): Des.(a) Newton Teixeira Carvalho , 13ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 11/04/2019, publicação da súmula em 26/04/2019) (Grifo nosso)

Assim, se ficar demonstrado que o médico agiu com os devidos cuidados, atuando com zelo, diligencia e prudência, seguindo os protocolos médicos, não há que se falar em ato ilícito e, portanto, fica descaracterizada a culpa, elemento necessário para a configuração da responsabilidade civil do médico.

Importante ressaltar que, em regra, o médico possui obrigação de meio. Portanto, mesmo que o resultado do procedimento ou tratamento seja insatisfatório, não havendo a demonstração da culpa, o médico não poderá ser responsabilizado civilmente.

EMENTA: APELAÇÃO – INDENIZAÇÃO – ERRO MÉDICO – RESPONSABILIDADE SUBJETIVA – HOSPITAL – RESPONSABILIDADE PRESUMIDA – SÚMULA 341 DO STF – CULPA – DEVER DE INDENIZAR. A responsabilidade pessoal do médico é apurada mediante verificação de culpa, por ser profissional liberal, conforme disposto no art. 14, § 4º, do Código de Defesa do Consumidor. Nos termos da Súmula 341, do Supremo Tribunal Federal, “é presumida a culpa do patrão ou do comitente pelo ato culposo do empregado ou preposto”, sendo, pois, presumida a responsabilidade do hospital caso se verifique a culpa do médico que atua em suas dependências. A obrigação do médico é de meio, de envidar todos os esforços para buscar a cura, não podendo assegurar o resultado positivo, que depende de fatores inerentes à situação pessoal do paciente. Ausente a prova da configuração de erro médico, não se reconhece a obrigação de indenizar.  (TJMG –  Apelação Cível  1.0000.23.312947-7/001, Relator(a): Des.(a) Evangelina Castilho Duarte , 14ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 08/02/2024, publicação da súmula em 09/02/2024) (Grifo nosso)

Essa obrigação de meio, contudo, possui algumas exceções. A cirurgia plástica estética ou embelezadora, por exemplo, é uma obrigação de resultado. Havendo promessa de resultado pelo cirurgião plástico e esse não é alcançado, é possível que haja a responsabilização civil do profissional.

Assim, verifica-se que, em regra, para que haja a responsabilização do médico, imprescindível a demonstração da culpa e da ocorrência de ato ilícito, dano e nexo de causalidade.

Contudo, quando o atendimento é realizado através do Sistema único de Saúde, há algumas diferenciações. A primeira diferença é que nesse caso não é possível a aplicação do Código de Defesa do Consumidor. Para o Superior Tribunal de Justiça, nesses casos se aplica as normas relacionadas à responsabilidade civil do Estado. A responsabilidade do agente público é objetiva, portanto, independe de culpa, bastando o dano e o nexo causal para gerar o direito de reparação.

Em segundo lugar, quando o atendimento foi realizado pelo SUS, o médico não pode ser parte na ação, devendo a ação recair sobre o Estado ou a pessoa jurídica de direito privado prestadora de serviço público, conforme pacificado pelo Tema 940 do Supremo Tribunal Federal:

A teor do disposto no art. 37, § 6º, da Constituição Federal, a ação por danos causados por agente público deve ser ajuizada contra o Estado ou a pessoa jurídica de direito privado prestadora de serviço público, sendo parte ilegítima para a ação o autor do ato, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa

Nesse mesmo sentido, vem decidindo o Tribunal de Justiça de Minas Gerais:
EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO INDENIZATÓRIA – ERRO MÉDICO – ATENDIMENTO EM HOSPITAL PRIVADO CONVENIADO DO SUS – ILEGITIMIDADE PASSIVA DO AGENTE – TEMA 940 DO STF. A teor do disposto no art. 37, § 6º, da Constituição Federal, a ação por danos causados por agente público deve ser ajuizada contra o Estado ou a pessoa jurídica de direito privado prestadora de serviço público, sendo parte ilegítima para a ação o autor do ato, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa (Tema 940 do STF). Ainda que o médico não tenha vínculo direto com a Administração Pública, a atuação como agente de pessoa jurídica de direito privado prestadora de serviço público, em convênio do SUS, afasta sua legitimidade para a ação ajuizada por usuário do serviço público, devendo responder apenas em ação regressiva.  (TJMG –  Apelação Cível  1.0000.23.314205-8/001, Relator(a): Des.(a) Marcelo Pereira da Silva , 11ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 31/01/2024, publicação da súmula em 31/01/2024)


EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO INDENIZATÓRIA. ERRO MÉDICO. PROFISSIONAIS MÉDICOS QUE ATENDEM PELO SUS EM HOSPITAL PARTICULAR. ILEGITIMIDADE PASSIVA DOS MÉDICOS. TEMA 940 DO STF. INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA. NÃO CABIMENTO. RECURSO A QUE SE NEGA PROVIMENTO.

– Na esteira do TEMA 940 do STF, são consideradas partes ilegítimas os profissionais médicos que, embora atuando em hospital que não pertença à rede pública, os serviços são correlatos com o SUS (SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE) e na qualidade de agentes públicos no momento do atendimento.

– Incabível a inversão do ônus da prova em desfavor do Hospital que faça o atendimento frente ao convênio com o Sistema Único de Saúde.  (TJMG –  Agravo de Instrumento-Cv  1.0000.21.214488-5/002, Relator(a): Des.(a) Luiz Carlos Gomes da Mata , 13ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 08/02/2024, publicação da súmula em 09/02/2024)

Isso não significa, porém, que o médico não será responsabilizado quando o atendimento for pelo SUS. Havendo a condenação do Estado ou da pessoa jurídica prestadora de serviço público, eles podem entrar com Ação Regressiva contra o médico que causou o alegado dano.

Assim, é possível concluir que a responsabilização civil do médico em ações indenizatórias por erro médico apenas será possível se ficar confirmada a ocorrência de negligência, imprudência ou imperícia. Comprovando-se que o médico agiu com zelo, cuidado, atenção, prudência e de acordo com os protocolos médicos, ele não poderá ser responsabilizado civilmente.

 

Referências:

ASSIS, Renato de. Infográfico 2024. Judicialização da saúde e da medicina no Brasil. Acesso em: 27 fev. 2024.

TEIXEIRA, Fernando. Volume de processos por “erro médico” cresce no Judiciário. Valor Econômico, Legislação. São Paulo, 26 de fevereiro de 2024. Disponível em: https://valor.globo.com/legislacao/noticia/2024/02/26/volume-de-processos-por-erro-medico-cresce-no-judiciario.ghtml. Acesso em: 27 fev. 2024.

PEDROSA, Skendell. Diferença entre negligência, imprudência e imperícia. Jusbrasil. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/noticias/diferenca-entre-negligencia-imprudencia-e-impericia/159520942. Acesso em: 27 fev. 2024.

REBELO, Tertius. Erro médico e o aumento de ações judiciais e processos ético-profissionais. Consultor Jurídico, 16 de março de 2023. Disónível em: https://www.conjur.com.br/2023-mar-16/tertius-rebelo-erro-medico-oaumento-acoes-judiciais/. Acesso em: 27 fev. 2024.

PAGNO, Marina. Brasil tem 545,4 mil médicos; mais da metade está concentrada somente nas capitais. G1, Seção Saúde. Disponível em: https://g1.globo.com/saude/noticia/2023/02/06/brasil-tem-5454-mil-medicos-mais-da-metade-esta-concentrada-somente-nas-capitais.ghtml. Acesso em: 27 fev. 2024.

SOUZA, Neri Tadeu Camara. Da Responsabilidade Civil do Médico. Disponível em: https://portal.cfm.org.br/artigos/da-responsabilidade-civil-do-medico/. Acesso em: 27 fev. 2024.

CDC não é aplicável a atendimento custeado pelo SUS em hospitais privados conveniados. Superior Tribunal de Justiça, 06 de agosto de 2020. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/06082020-CDC-nao-e-aplicavel-a-atendimento-custeado-pelo-SUS-em-hospitais-privados-conveniados.aspx. Acesso em: 27 fev. 2024.

Dr.ª Larissa Lacerda

OAB/MG 203.305

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